Falar em retrocesso na experiência sonora doméstica soa no mínimo contraditório no contexto deste site. Evoluímos muito nas tecnologias de home theater, com cada vez maior qualidade de reprodução, apresentadas aqui em diversas oportunidades.
Porém, se olharmos por uma perspectiva mais ampla sobre o consumo e os consumidores de conteúdo audiovisual doméstico, perceberemos que a grande maioria das pessoas que assistem Blu-ray, vídeos sob demanda e programação de TV em geral não o fazem através de home theater. Quando fazem, são poucos aqueles que os têm configurados corretamente, principalmente devido à complexidade de instalação.
Além disso, sabemos que o conteúdo audiovisual produzido mundialmente é consumido em inúmeras plataformas, nas quais, além do tradicional aparelho de TV, temos dispositivos portáteis como tablets e smartphones, cuja experiência se dá muitas vezes fora de casa, em ambientes extremamente ruidosos. Por isso, exceto nos casos em que há um alto investimento em home theater, todas as plataformas citadas, incluindo a TV, promovem uma experiência sonora cada vez mais limitada.
O som na maioria das casas dos espectadores está cada vez pior, com experiências muito aquém das vivenciadas nas salas de cinema. Fora de casa, quando consome o conteúdo audiovisual através de headphones estéreo, a experiência também não é das melhores. Curiosamente, vemos ao mesmo tempo notícias sobre tecnologias de áudio 3D, imersivas e com mais e mais canais e caixas acústicas disponíveis. Quem não investiu ou não pode investir em um home theater 5.1 investiria em mais canais? Mundo confuso. Veremos que nem tanto.
O APARELHO DE TV
Se olharmos apenas para os aparelhos de TV, mais especificamente para os alto-falantes a eles integrados, notaremos uma triste realidade. Tais falantes são em sua maioria voltados para baixo ou até mesmo atrás dos aparelhos. O impacto disso é significativo na qualidade de áudio e, principalmente, na capacidade de entendermos o que é falado no conteúdo (inteligibilidade). Um enorme retrocesso, inclusive quando comparamos com as TVs de tubo, da era analógica, que possuíam alto-falantes, além de voltados para a frente, de um porte mais adequado à reprodução em casa.
Além disso, temos um fato estarrecedor. Não acontece uma inovação de áudio em televisão que seja experimentada efetivamente pela maioria dos espectadores desde o lançamento das TVs estéreo, em meados dos anos 80! Nada de novo nesse sentido chega à maioria da população. São cerca de trinta anos evoluindo em imagem e também em linguagem e estética sonora, mas involuindo na qualidade de experiência final do espectador, no que diz respeito ao som.
E a questão não é a tecnologia em si. O Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), em operação desde 2007, permitiu produzir e consumir conteúdos em surround 5.1 via TV aberta. Hoje, grande parte da grade da Globo, por exemplo, pode ser assistida em 5.1. Novelas e séries, em sua totalidade, são produzidas considerando o áudio 5.1. No entanto, quantas pessoas o leitor conhece que, quando assistem a esses conteúdos em TV aberta ou a cabo, o fazem através de uma experiência surround?
DISPOSITIVOS PORTÁTEIS
No caso dos dispositivos móveis, embora haja vantagens no que diz respeito à inteligibilidade por termos os falantes próximos aos ouvidos, a qualidade de muitos headphones utilizados é questionável, e o elevado nível de pressão sonora usado por algumas pessoas, além de prejudicar a experiência do espectador, pode causar sérios danos auditivos.
Outro ponto é que quem produziu o conteúdo dificilmente pensou na experiência com fones, e o áudio em si não tem nada tecnologicamente diferente do que foi produzido nas últimas décadas. Talvez o leitor já tenha ouvido falar na experiência binaural, na qual através de headphones o ouvinte tem a sensação de som tridimensional, com elementos vindos de cima e de trás da cabeça. Mas a realidade até o momento é que, para isso acontecer, deve-se produzir o conteúdo pensando completamente nessa experiência.
Isso significa que a produção de áudio deve ser realizada duas vezes, uma estéreo tradicional e outra binaural. Por fazer duas vezes o mesmo conteúdo geralmente não ser uma opção, é muito comum ver esse tipo de conteúdo disponível em experiências dedicadas e não atrelado como alternativa ao espectador em uma série, novela ou musical, por exemplo.
ONDE ENTRA O ÁUDIO IMERSIVO NESSE CENÁRIO PESSIMISTA?
Imagine uma tecnologia que promova uma experiência surround tridimensional em ambientes domésticos, incluindo sons que vêm de cima do espectador, e que para isso não seja necessário instalar mais caixas acústicas. Imagine uma tecnologia que promova essa experiência tridimensional em dispositivos de menor porte de investimento, incluindo headphones. Imagine uma tecnologia que, para isso, não torne necessário o produtor de conteúdo realizar uma versão dedicada a essa experiência.
É justamente no intuito de atender a todas essas premissas que surgem as tecnologias que conhecemos hoje como “áudio imersivo”, entre as quais em radiodifusão se destacam Dolby Atmos Home e MPEG-H 3D Audio.
TRIDIMENSIONALIDADE E OBJETOS
Ambas as tecnologias citadas trabalham com dois conceitos-chave: áudio tridimensional e mixagem por objetos. A partir dessas duas características, o áudio imersivo se diferencia do surround 5.1, 7.1 etc.
O áudio é considerado tridimensional quando a perspectiva da altura é contemplada através de canais elevados (height channels). É como se houvesse uma esfera imaginária em torno do ouvinte, e não somente sons vindos de frente e de trás como nos formatos tradicionais de surround. Nesses casos, as configurações de canais em home theater se dão com mais um número após o “.1”. A configuração 5.1.4, por exemplo, considera mais quatro canais elevados além do 5.1. Observe nas imagens abaixo mais configurações tridimensionais.
Naturalmente, ter essas alternativas com mais caixas acústicas localizadas no teto dá possibilidades incríveis à experiência do espectador e ao criador de conteúdo. Entretanto, sabemos que home theater com caixas no teto ainda é para poucos, não só pelo custo mas também pela complexidade de instalação. Por esse motivo, opções interessantes aparecem no mercado para viabilizar a experiência 3D.
Para a tecnologia da Dolby, as caixas denominadas Atmos enabled speakers possuem, além dos frontais, alto-falantes apontados para o teto (up-fire speakers). Com isso, através da reflexão no teto da sala, o espectador é capaz de ouvir sons como se viessem de cima, simulando caixas acústicas elevadas. Para alguns casos, existem módulos vendidos separadamente para acrescentar às caixas já existentes somente com os falantes up-fire. Basta posicioná-los em cima das caixas do home theater.
Além disso, as já populares soundbars ganharam nos últimos meses diversas opções “Atmos-enabled”, com parte dos falantes da barra apontados para cima e para as laterais (Fig. 5), possibilitando uma experiência tridimensional através das reflexões do som no teto e nas paredes da sala, em um formato mais acessível aos consumidores do que caixas no teto.
Um ponto de atenção para o uso de caixas up-fire e soundbars com essa tecnologia é a condição acústica do ambiente. Se o ambiente possui tratamento acústico controlando as reflexões, o efeito será prejudicado. Quanto menos “preparada” e mais reflexiva for a sala, melhor para esse tipo de falante. Se o leitor investiu em uma sala de home theater com tratamento acústico, vale partir para uma solução com caixas em vez de contar com as reflexões nas paredes e teto.
As tecnologias de áudio imersivo também têm como proposta levar a experiência aos headphones. A ideia é ter o mesmo conteúdo sonoro adaptado a qualquer plataforma, ou seja, sem a necessidade de produzir uma versão binaural. O mesmo áudio produzido originalmente é adaptado ao headphone, à soundbar e até um home theater com diversas caixas acústicas. Isso é um incrível recurso, pois com essa capacidade de adequação à plataforma é possível ter uma experiência imersiva tridimensional em diversos níveis de investimento e instalação, seja em casa ou em dispositivos móveis.
OBJETOS
Além da tridimensionalidade, trabalhar com objetos sonoros no momento da produção de conteúdo ajuda muito na criação dessa nova experiência. Em vez de pensar em quantos canais tem o sistema de reprodução doméstico do espectador, e produzir com essa limitação criativa, os profissionais pensam em elementos sonoros e em quais posições de uma esfera imaginária em torno do ouvinte eles são posicionados ou se movimentam.
Em outras palavras, não importa tanto mais saber se um trabalho é produzido para headphones, estéreo tradicional, 5.1, 7.1, 7.1.4 ou além. Basta realizar o trabalho dizendo quais sons ocupam posições específicas que, a partir daí, essas informações são adequadas à plataforma já no ambiente do espectador.
Essa abordagem com o uso de objetos em vez de apenas canais, em que alguns sons são entregues pelo criador do conteúdo separadamente, junto com informações de posição, teve origem no cinema. A tecnologia Dolby Atmos, por exemplo, que no Brasil já pode ser encontrada em 27 salas, além de contar com mais caixas acústicas, algumas localizadas no teto da sala promovendo a tridimensionalidade, possibilita também uma maior definição de posicionamento de elementos sonoros em seu padrão.
Tecnicamente, em uma produção tradicional por canais em 7.1, por exemplo, independentemente do número de caixas acústicas na sala, o ouvinte é exposto a apenas 7 posições de som: os canais esquerdo, direito, central, traseiro esquerdo, traseiro lateral esquerdo, traseiro direito e traseiro lateral direito. Mesmo quando observamos a sala antes de começar o filme e percebemos que há diversas caixas atrás e ao lado, devemos lembrar que na abordagem habitual, sem o uso de objetos, todas as caixas do canal esquerdo traseiro, por exemplo, reproduzirão sempre a mesma informação.
Com o uso de objetos é diferente. Pelo fato de que, durante a produção do conteúdo determinado som foi eleito um “objeto” e entregue separadamente ao processador da sala junto com a informação de sua posição, é possível que ele seja reproduzido em até mesmo uma única caixa. Com isso, a experiência do espectador na sala é a de melhor definição de onde está localizado cada objeto sonoro, assim como seus movimentos.
A TV DO FUTURO
Na versão home da tecnologia Atmos, o mesmo princípio de uso de objetos é adotado, possibilitando maior definição e adequação ao ambiente doméstico e, consequentemente, diferentes plataformas. O mesmo acontece com a tecnologia MPEG-H 3D Audio, desenvolvida pela MPEG-H Audio Alliance (Fraunhofer, Technicolor e Qualcomm) visando aplicações em broadcast.
Os padrões AC4, da Dolby, que inclui a tecnologia Atmos, e MPEG-H, que inclui o 3D Audio, são previstos pelo comitê norte-americano ATSC (Advanced Television Systems Comittee) para a próxima geração de televisão (ATSC 3.0). Nesse fórum, além da imersão, questões como interatividade através do áudio também são tratadas. Dentro desse padrão, a Coreia do Sul escolheu o MPEG-H e o AC4 é o formato adotado pelos EUA.
ÁUDIO IMERSIVO JÁ É REALIDADE?
Desde 2014, quando foi lançado o primeiro filme para Blu-Ray em Dolby Atmos Home, são mais de 230 títulos produzidos. Entre os equipamentos domésticos, são mais de 75 receivers e home theater-in-a-box, 40 modelos de caixas, 11 soundbars e mais de 60 smartphones e tablets com a Tecnologia Dolby Atmos integrada. Esses números vêm mudando rapidamente, e provavelmente no momento em que o leitor está lendo esse texto já serão outros.
Quanto aos produtores de conteúdo, nomes como 20th Century Fox, Universal Studios, BBC, Warner Bros, Paramount, HBO e Sony Pictures, entre outros, encabeçam a lista. Para produção OTT, nomes como Netflix, BT Sports, Comcast, Maxdom, Vudu, iQIY, Orange, JSCN e BGCTV já disponibilizam conteúdo em Dolby Atmos via streaming.
No Brasil, TV Globo e Globosat já produziram diversas experiências com áudio imersivo. A Globosat realizou a primeira transmissão ao vivo do mundo em 4K e Dolby Atmos, em 2015, no Rock in Rio. Em 2017, a Globo realizou, também de forma inédita no mundo, a primeira transmissão em Atmos via streaming ao vivo para plataforma OTT, no desfile das escolas de Samba do Rio de Janeiro. Para cinema, agora em janeiro o primeiro conteúdo produzido no Brasil foi exibido em uma sala Dolby Atmos. Foi o primeiro capítulo da novela Deus Salve o Rei, em sessões premiere nas salas Xplus da rede UCI.
A Globo realizou também experiências em clipes da série Justiça que, além de serem as primeiras mixagens realizadas na América Latina em dramaturgia para o formato Atmos home, fizeram parte, entre produções norte-americanas, do material de demonstração do formato no estande da Dolby, na feira internacional de mídia, tecnologia e entretenimento IBC (International Broadcasting Convention) em Amsterdã. A plataforma OTT da Globo, a Globo Play, já teve o áudio imersivo integrado com sucesso em versão de pesquisa e desenvolvimento.
Para assistir a conteúdos em Dolby Atmos Home, por exemplo, os aparelhos existentes que possuem decodificadores no formato Dolby Digital Plus, que são muitos, já são capazes de “entender” conteúdos produzidos em Atmos. Dessa forma, uma vez decodificado um conteúdo que foi produzido no formato, a experiência imersiva pode ser vivida em home theater (e também soundbars), nas mais diferentes configurações.
O tema áudio imersivo é recorrente nos fóruns internacionais, e o formato, tanto em cinema quanto em TV, está se tornando cada vez mais popular. A experiência do espectador, hoje bastante limitada pela qualidade de reprodução de som da maioria das TVs e pela complexidade de se ter um home theater tradicional na maioria dos lares, parece enxergar uma luz no fim do túnel, através de tecnologias que permitem melhor experiência sonora em plataformas de diversos níveis de investimento, incluindo as portáteis.
Temos finalmente um cenário em que aqueles que decidirem investir em sistemas complexos de home theater, com diversas caixas acústicas na sala, incluindo o teto, terão acesso a uma experiência mais próxima à das salas de cinema; e, por outro lado, aqueles que não fizerem esse investimento, ainda assim poderão ter acesso a uma experiência melhor do que a atual.
Por fim, sabemos que a imersão no conteúdo não depende de uma tecnologia A ou B, podendo acontecer até mesmo em um áudio mono bem desenhado e produzido. Porém, com 3 dimensões de áudio e maior definição da localização dos elementos sonoros, há maiores chances tanto para quem cria conteúdo quanto para quem usufrui da arte dos criadores.
Agora, é ver o comportamento do mercado no que diz respeito à disponibilidade de equipamentos no Brasil, conteúdos produzidos, assistir, ouvir e criticar, para darmos o próximo passo na parte sonora da experiência audiovisual.
Sobre o autor:
Rodrigo Meirelles trabalha com inovação tecnológica, desenvolvimento de pessoas e produção sonora para conteúdo audiovisual. Há 8 anos na Globo, ocupa hoje o cargo de supervisor executivo de áudio, responsável pela equipe e processos de produção de áudio na área de Entretenimento da empresa. Suas graduações são em engenharia eletrônica e de computação, produção fonográfica e seu mestrado é em educação e mídia. Um resumo do artigo foi publicada na edição de novembro/2017 da revista HOME THEATER & CASA DIGITAL. O Rodrigo pode ser contactado no Linked In, neste endereço.