O autor é escritor de livros sobre tecnologias de áudio & vídeo. Um dos jornalistas mais respeitados do segmento, atualmente é Editor da revista The Absolute Sound.
O servidor Reference, da fabricante espanhola Wadax (foto), que acabamos de testar, traz algumas questões fascinantes sobre a natureza do áudio digital. É o único da categoria que vem com três controles frontais permitindo ao usuário ajustar a amplitude e a forma das ondas digitais que representam a música. Esses controles não alteram a composição do sinal, com seus uns e zeros, mas em vez disso introduzem uma variabilidade no fluxo digital, um conceito radical que remete à reprodução analógica.
A tecnologia de áudio digital supostamente serve para, ou funcionar com perfeição ou então simplesmente não produzir sinal nenhum. Quando foi criada, eliminar as variações típicas do sinal analógico era parte de sua essência. Mas logo se tornou evidente que fluxos idênticos de sinal podiam, sim, soar diferentes se as amostragens fossem acompanhadas de jitter – mesmo sendo apenas minúsculos erros temporais de processamento.
Embora esse mecanismo já seja perfeitamente compreendido 30 anos depois, foi um choque para quem se convencera de que dados de áudio são apenas mais uma forma de informação digital, que pode ser transmitida e copiada indefinidamente sem erros. Diferente de outras formas de representação de dados, um sistema de áudio termina sempre num sinal analógico, e este é analisado pelo fantástico mecanismo sensitivo composto por nossos ouvidos.
ÁUDIO DIGITAL, COM VARIAÇÕES ANALÓGICAS
Apesar de tudo que aprendemos sobre áudio digital, muita coisa ainda permanece misteriosa. Um desses mistérios é exatamente como esse aparelho da Wadax, com um controle chamado Speed, ajusta as peculiaridades da forma de onda para alterar as sensações de ritmo e andamento da música.
Essa “variabilidade analógica” dos sinais digitais sempre me fascinou. Quando trabalhava num laboratório de masterização de CDs, no final dos anos 80, uma de minhas tarefas era verificar os problemas técnicos nas fitas master que provocavam falhas nos discos replicados. Um dia, soube de um cliente – uma pequena gravadora independente – que estava descontente com a qualidade de som dos discos que fazíamos.
No caso, eram gravações de uma banda com quem conversei e que descreveram como o som do disco soava diferente da fita master. Era a primeira vez que um cliente reclamava da qualidade sonora de um disco replicado. As diferenças sônicas descritas não poderiam ser resultado de erros nos dados do disco.
Para quem não está familiarizado, nosso Controle de Qualidade sempre rejeitava qualquer disco que apresentasse erros incorrigíveis. O processo de correção era extremamente robusto; algo capaz de corrigir com perfeição (não simplesmente encobrir o erro através de interpolação) até 4.000 bits consecutivos, fossem ausentes ou corrompidos. Além disso, tais erros apareciam como lapsos audíveis do sinal, não como mera redução de palco sonoro, por exemplo.
A primeira coisa que fiz foi comparar os dados de uma fita master daquele cliente, em formato U-Matic (3/4 de polegada), com os dados de um disco replicado; utilizei um sistema de pré-masterização baseado em CD-ROM. Como esperado, os dados das duas mídias eram idênticos.
Para os engenheiros com quem eu trabalhava, essa comparação encerrava a discussão: “Bits são bits”, disseram eles, desconsiderando as reclamações do cliente. Seu argumento era que, como os discos replicados contêm dados idênticos aos da fita master, nossa empresa havia feito bem o seu trabalho, e as tais diferenças sônicas não passavam de invenção oriunda da imaginação de alguém.
POR QUE DOIS DISCOS IGUAIS SOAM DIFERENTES
Esses caras eram engenheiros brilhantes. Tinham desenhado e construído, “na mão”, as duas máquinas de masterização de CDs existentes em nosso laboratório – e isso não era pouca coisa. No entanto, o audiófilo que existia em mim sentia-se compelido a explorar a fundo o problema. Decidi gravar um novo master em disco a partir da fita original, replicando na segunda máquina que possuíamos. Isso me permitiria ouvir os dois discos através do mesmo player, algo impossível de fazer quando tínhamos somente o disco replicado e a fita master 3/4.
Após verificar que o segundo disco continha exatamente os mesmos dados do primeiro e da fita master, fui ouvir os dois discos em minha casa. De fato, os discos soavam diferentes – o segundo mais suave e dimensional que o primeiro. Sem contar nada disso ao cliente, entreguei-lhe o segundo disco. E ele me relatou que a gravação reproduzia exatamente o que havia sido criado pela banda no estúdio.
Aí então fiquei realmente curioso. Aluguei um analisador capaz de medir graficamente os períodos de tempo contidos nas estruturas do CD. Na plotagem, surgiram nove variações (pits) com seus precisos períodos de tempo que codificavam as informações da gravação.
O primeiro disco, de qualidade inferior, apresentava uma distribuição de frequências bem mais ampla (larga) dos sinais gerados nos pits. No segundo, com som melhor, o gráfico das frequências era mais estreito, indicando amplitudes mais precisas.
E mais: observando o sinal gerado pelo detector do CD player, que mostra a imagem real da superfície do disco, percebi que as transições pit-to-land e land-to-pit (os altos e baixos das ondas sonoras) eram mais claras e nítidas no segundo disco.
Em resumo, o jitter estava embutido nas próprias estruturas do disco. Não era surpresa, portanto, que a segunda máquina de masterização produzisse menor variação de tempos. Seu prato de rotação era controlado por um sistema servo-rotacional muito mais sofisticado e preciso.
Embora esse exercício fosse revelador, ainda assim não havia resposta para a questão de como aquelas variações de tempo no disco não foram captadas pelo enorme e complexo sistema de processamento que tínhamos, a ponto de afetar o sinal de saída analógico.
Essa questão permanece sem resposta até hoje. Embora nossos conhecimentos sobre áudio digital tenham avançado enormemente nos últimos 25 anos, ainda há muito a ser descoberto. O enigma apresentado pelo servidor da Wadax é apenas o exemplo mais recente. Ele mostra os limites de nossa compreensão, ao nos trazer mais perguntas do que respostas.
*Artigo publicado originalmente na edição de maio da The Absolute Sound. Para ver o original na íntegra, clique aqui.