Parece que não, mas a TV Digital no Brasil está prestes a completar 20 anos de idade. Foi em dezembro de 2006 que começaram as transmissões, embora tenham se passado quase 10 anos até que a maioria da população pudesse receber em casa imagens em alta definição.
Nesse período, tivemos a chegada dos serviços de streaming, a resolução de imagens aumentou 8 vezes (do HD original, de 1.366×720 pixels, para o 4K, com 8,3 milhões) e surgiu a Inteligência Artificial. Mais: o consumidor abandonou o velho hábito de seguir os horários definidos pelas emissoras para ver seus programas favoritos a qualquer hora, inclusive em dispositivos móveis.
Quanta mudança! Pois prepare-se, porque a TV 3.0 que vem por aí vai virar tudo isso novamente do avesso. Se tudo der certo, devem começar em 2025 – talvez até antes – as transmissões experimentais no novo padrão brasileiro de televisão digital, que irá combinar as tecnologias de TV e de internet.
Será possível assistir a conteúdos em 4K e até 8K, com áudio imersivo, sem queda de sinal, tanto em TVs quanto em dispositivos móveis.
A nova diretoria do Fórum SBTVD, eleita em fevereiro, tem a missão de coordenar os testes finais da TV 3.0 e apresentar ao governo, até 2024, uma proposta técnica e mercadológica. Caberá ao presidente da República, apoiado na consultoria da Anatel e do Ministério das Comunicações (Minicom), a palavra final.
Criado em 2006, quando do lançamento do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), que trouxe ao país a TV de Alta Definição (HDTV), o Fórum reúne especialistas de todos os setores envolvidos no assunto: emissoras, produtoras de conteúdo, fabricantes de equipamentos, desenvolvedores de software e pesquisadores das principais universidades.
São esses técnicos que vêm, desde 2020, testando e analisando os sistemas de TV 3.0 já implantados em países como EUA, Alemanha, Japão, Coreia do Sul e China, alguns já com sinal no ar. Eles receberam propostas de empresas do mundo inteiro, que fornecem soluções tanto na chamada “camada física” (que se refere aos equipamentos usados na transmissão dos sinais, quanto na “camada de aplicações” (nome dado ao conjunto de softwares, aplicativos e códigos que permitirão a comunicação entre os dispositivos).
Além de transmitir conteúdos de vídeo em 4K e até 8K, a TV 3.0 será compatível com áudio imersivo e personalizado Dolby Atmos e demais padrões no formato MPEG-H Audio, para TVs que tenham essas capacidades. Será possível ainda uma emissora oferecer programas diferentes simultaneamente para públicos específicos, com base no perfil do telespectador; este será monitorado em tempo real através de algoritmos.
Outro avanço da TV 3.0, que já está sendo adotado em alguns países, é a transmissão dos sinais para dispositivos móveis com robustez e precisão, sem quedas de sinal. “A indústria poderá produzir receptores compatíveis com todos esses recursos”, diz o novo presidente do Fórum, Raymundo Barros (foto). “Na prática, o consumidor poderá acessar os conteúdos com a mesma qualidade, não importando qual seja o dispositivo”.
Plataformas de streaming serão convidadas a participar da 3.0, para que o usuário tenha uma experiência integrada de TV e internet.
Nesta entrevista exclusiva concedida no final de abril, Barros, que é também diretor de tecnologia e estratégia da Globo, e que participou ativamente da implantação da HDTV duas décadas atrás, revela como será a implantação da TV 3.0 a partir de 2024. Segundo ele, o processo da HDTV serviu de intenso aprendizado para todos os segmentos envolvidos.
“A diferença é que temos agora um novo player: as plataformas de streaming, que não existiam em 2006. Queremos que elas também participem do processo porque a TV 3.0 será, acima de tudo, uma combinação das experiências que o usuário tem hoje com a televisão e a internet. Aquele modelo de 20 anos atrás não existe mais. Queremos jogar com as plataformas o mesmo jogo, aproveitando as simetrias que essa nova tecnologia oferece”.
Barros tem como vice o executivo Marcio Hermann, gerente de Relações Governamentais da Samsung, líder mundial no mercado de TVs. Ou seja, o Fórum é capitaneado por representantes da principal emissora (hoje também forte no streaming, via Globoplay) e da principal fabricante. Sua missão é convencer gigantes como Google, Amazon, Roku, Netflix e Facebook, entre outros, a entrarem no Fórum para também se beneficiarem das oportunidades proporcionadas pela TV 3.0.
Veja a seguir os detalhes da entrevista:
P – Hoje, as plataformas de streaming competem diretamente com a TV aberta e principalmente a TV paga. Como atrair essas empresas para trabalhar junto com as emissoras no novo padrão de TV?
R – O primeiro aspecto que precisa ser entendido é que a experiência de assistir TV 3.0 será uma experiência logada. Ou seja, você precisará informar quem você é para acessar os conteúdos. Isso é comum hoje na internet, e milhões de pessoas se logam para ver e ouvir conteúdos pagos e gratuitos. O que o novo padrão permitirá é levar esses conteúdos a uma quantidade infinitamente maior de usuários. A TV aberta é ainda a preferida por 60% da população. Nem o YouTube atinge tanta gente.
“Na TV 3.0, cada serviço será uma espécie de ‘super app’, em que as empresas oferecerão diversos conteúdos para o consumidor escolher”
P – Pela forma como está sendo descrita, a TV 3.0 lembra muito mais a experiência da internet e do streaming do que a TV tradicional…
R – Bem, há inúmeras questões regulatórias, que não nos cabe analisar aqui. TV e internet são, por lei, mídias diferentes. Mas as pessoas na internet consomem hoje muitos produtos gratuitos, e outros conteúdos que são pagos. Isso acontecerá também na TV 3.0, só que de uma forma muito mais rápida, fluida e customizada de acordo com o perfil do usuário. Quando você sintonizar uma emissora, por exemplo, não estará recebendo apenas os programas da TV linear, mas todos os conteúdos que aquela empresa oferecer.
P – Quem hoje assiste só TV aberta não paga nada. Isso irá mudar? O consumidor precisará fazer assinatura dos canais?
R – Não, cada emissora ou produtora de mídia terá a liberdade de definir suas ofertas e seus modelos de negócio, com e sem publicidade. Hoje, o consumidor tem acesso à TV aberta, que é gratuita, financiada por anúncios, e a uma infinidade de serviços gratuitos na internet. E tem também, se quiser, conteúdos pagos, seja por assinatura ou on-demand. O que muda na TV 3.0 é que cada serviço será uma espécie de “super app”, em que as empresas oferecerão diversos tipos de conteúdo para o consumidor escolher. A TV 3.0 permitirá variados modelos de negócio que o próprio mercado poderá criar, e o consumidor irá escolher o que mais lhe agrade.
P – O fato de precisar se logar não é uma dificuldade para o usuário usufruir dos serviços?
R – Achamos que isso será bom para o consumidor. Uma empresa de mídia que tem muitas ofertas pode customizá-las de acordo com o perfil do usuário. Haverá sistemas de recomendação como há hoje nas plataformas de streaming, e as emissoras poderão oferecer conteúdos regionalizados, por exemplo. Nosso objetivo é que o usuário tenha uma TV mais próxima daquilo que gosta e deseja.
P – Na sua opinião, quais serão os principais benefícios da TV 3.0 para o público brasileiro?
R – O conceito da TV 3.0 pode ser resumido da seguinte forma: “tudo na mão do consumidor”. Já atingimos uma qualidade técnica excelente, com alta resolução de imagem, áudio surround etc. Estamos trabalhando agora na definição dos modelos de negócio, algo que não foi pensado quando introduzimos a TV Digital, em 2006. A ideia é criar para as empresas de mídia a oportunidade de oferecer todos os seus conteúdos em todas as plataformas: TV aberta, fechada, streaming…, tudo isso de forma integrada.
P – Mas, como se dará essa integração na casa do usuário?
R – Não apenas na casa dele, mas onde ele estiver: na rua, no carro, no metrô, em viagem, com qualquer dispositivo ele poderá acessar os conteúdos oferecidos pelas empresas de mídia. Estará tudo disponível em todas as telas que o consumidor quiser.
“Não teremos um receptor “jabuticaba”… vamos aproveitar o melhor do que está sendo feito em cada país onde a TV 3.0 está sendo implantada”
P – A qualidade de imagem será igual para todo mundo?
R – O mercado de dispositivos evolui muito mais rapidamente do que a oferta de conteúdos. O consumidor está se acostumando a uma qualidade de som e imagem que as empresas de mídia terão que oferecer também na TV 3.0. Tecnicamente, teremos condições de exibir conteúdos em Full-HD, 4K e talvez até 8K, com áudio imersivo, multiprogramação, interatividade etc. Agora, cada empresa irá decidir o que oferecer e em qual formato.
P – Os televisores e demais receptores de sinal serão muito diferentes dos atuais?
R – No Fórum, temos a participação ativa dos fabricantes. Claro que eles vão continuar aperfeiçoando seus dispositivos, que dependerão cada vez mais de softwares. Veja que hoje mais da metade dos aparelhos já é 4K. Temos que garantir que a recepção – que chamamos de “camada física de distribuição” – tenha com 4K a mesma qualidade e robustez atual do HD.
P – A TV 3.0 brasileira será a mesma que já existe em outros países?
R – Uma coisa já decidida é que não teremos um receptor que seja uma “jabuticaba”… tem de ser algo inserido no ecossistema que o mundo inteiro está adotando. Não vai ser preciso, por exemplo, produzir chipsets ultra específicos, nem novos padrões de compressão de sinal. Usaremos o protocolo IP, que já é consagrado. Temos analisado propostas de empresas do mundo inteiro que fornecem esses componentes. E claro que acompanhamos os processos de implantação da TV 3.0 em outros países. Estamos bem seguros em relação a esses aspectos técnicos. Vamos aproveitar o melhor do que está sendo feito em cada um desses países. Mas o que vai definir mesmo a experiência do consumidor serão os aplicativos e os sistemas operacionais.
P – Pode ser necessário criar novas plataformas smart para os aparelhos?
R – Hoje, quando se fala em smart TV temos Tizen (da Samsung), webOS (LG), FireTV (Amazon), Vidaa (Hisense/Toshiba), Android, Google, Roku, Vidaa. Veja que, na Globo, temos mais de 1.000 versões do Globoplay rodando por aí, pois cada fabricante e cada plataforma faz as suas adaptações. E nós, como produtores de mídia, precisamos monitorar para garantir que a performance seja a mesma em todos eles. Com um padrão integrado como é a TV 3.0, todas essas empresas vão poder participar para construir APIs (interfaces) que permitam a mesma experiência ao consumidor, não importando qual é o sistema operacional da sua TV.
P – Mas, com tantas marcas e sistemas, é possível alcançar essa padronização?
R – Nós sabemos que será difícil atingir isso de imediato em sua plenitude, mas queremos chegar no ano que vem com um mínimo de integração para garantir que o usuário aproveite os benefícios do novo padrão. Com cada empresa tendo que gerenciar tantas adaptações como existem hoje, o custo fica muito mais alto para todo mundo. Para que a TV 3.0 seja bem aceita pelo público, é fundamental essa convergência dos modelos de negócio e das ofertas das empresas de mídia unidas numa única experiência.
Na TV 3.0, emissoras e plataformas poderão criar novos modelos de publicidade, customizada de acordo com o perfil dos usuários
P – Há uma grande discussão hoje sobre o modelo FAST, que são serviços de streaming gratuitos sustentados por publicidade. A TV 3.0 prevê também essa alternativa?
R – Claro. Como disse, uma das preocupações é criar um padrão de televisão de alta qualidade e que seja viável economicamente. Na Globo, já trabalhamos com algoritmos e modelos avançados de publicidade com a participação direta das agências. Na TV 3.0, as possibilidades são muitas. As empresas de mídia poderão oferecer produtos e serviços de publicidade também customizados. É isso que justifica os investimentos das emissoras no novo padrão. Na época do HD, não tínhamos essa possibilidade. Não sabíamos como o sistema se pagaria. Mas todo mundo aceitou o desafio e tivemos a TV Digital. Agora, imagine se não tivéssemos implantado: hoje, em 2023, estaríamos ainda com sinal analógico, formato 4:3 e resolução SD… A TV aberta só tem essa relevância para a população brasileira porque construiu um patrimônio tecnológico a partir da introdução do HD.
P – Com a TV 3.0, acredita que as plataformas de streaming possam chegar à mesma audiência que a TV aberta alcança hoje?
R – Existem vários caminhos possíveis. Amazon, Roku, Google e todas as empresas que hoje oferecem adaptadores para TVs (dongles) deveriam investir na radiodifusão. Ou seja, inserir a TV 3.0 nesses dispositivos. Se você colocasse numa caixinha dessas todos os recursos que comentamos aqui, o usuário não precisaria trocar de TV. E essas empresas poderiam atingir 60% da população que está na TV aberta.
P – Comparando o processo atual com a implantação da HDTV, quase vinte anos atrás, está sendo mais fácil ou mais difícil?
R – Bem, eu participei diretamente daquele processo, com a equipe técnica da Globo, e um dos problemas foi que nós não conseguimos oferecer aos acionistas das emissoras nenhuma alternativa de novos modelos de negócio. É sempre bom lembrar que o serviço de TV aberta é gratuito, por lei, e precisa ser financiado pela publicidade. A TV aberta digitalizou a camada física, ampliou a qualidade audiovisual, mas as empresas ficaram limitadas ao que sempre tiveram em termos de receita. De lá para cá, o mundo mudou muito, e a TV 3.0 abre múltiplas possibilidades, permitindo conviver ofertas com e sem publicidade, conteúdos pagos e gratuitos, de uma forma totalmente integrada na tela que o consumidor escolher.