Maior grupo de mídia do país se transforma para unificar suas operações de TV e de internet
Por ORLANDO BARROZOEm 2016, quando foi lançada a primeira versão do Globoplay, a direção da Globo já sabia que aquilo não era definitivo. Mas já estava em andamento uma operação envolvendo vários setores do Grupo e que mirava anos à frente. A família Marinho havia decidido que o modelo de negócio que a sustentou nos últimos 50 anos, tendo a televisão como carro-chefe, precisava ser reformulado. O Globoplay que está no ar hoje pode ser definido como algo bem mais próximo do que os principais executivos do Grupo pensam como “TV do futuro”.
Após uma série de estudos, que incluiu o envio de executivos para analisar experiências similares em outros países e a contratação da consultoria internacional Accenture, no ano passado foi decidido que todas as empresas do Grupo seriam integradas como se fossem uma só.
Sob o slogan “uma só Globo”, teve início então um trabalho interno de conscientização de todos os funcionários, que agora devem trabalhar para uma media tech, ou seja, uma produtora de conteúdo capaz de entregá-lo em qualquer formato e da maneira mais eficiente (veja o slideshow). Para tudo isso, o domínio da tecnologia é fundamental. “A partir de agora, conteúdo e tecnologia estarão permanentemente integrados, gerando valor para o consumidor”, resume Raymundo Barros, diretor de Tecnologia do Grupo.
Nesta entrevista, ele detalha os fundamentos do projeto “uma só Globo” e como a mudança deve impactar o consumidor, que agora pode acessar conteúdos da Globo muito além da sua tela de TV.
P – A Globo é a maior produtora de conteúdo do país e uma das maiores do mundo, mas em termos de audiência já não é tão soberana. Como reconquistar esses telespectadores?
R – De fato, conteúdo é o DNA deste Grupo, e isso não muda. Mas reconhecemos que hoje o conteúdo em si não é mais suficiente. A experiência de consumo, o contexto, o entendimento do melhor momento para essa experiência, tudo isso é que faz a diferença. Cada um de nós somos pessoas diferentes ao longo de nossa jornada diária. Nós temos estudado profundamente essa mudança de comportamento do consumidor. E entendemos que esse processo passa necessariamente pela tecnologia. São bilhões de dados analisados, o empacotamento desses conteúdos para provocar uma experiência mais interessante, que traga mais emoção e mais informação.
P – O Grupo tem dezenas de milhares de funcionários, colaboradores e parceiros, além de suas afiliadas. Como integrar todo esse público ao novo projeto?
R – Tenho falado dentro da Globo que tecnologia é muito menos uma área da empresa, e muito mais uma disciplina, que precisa ser compreendida por qualquer um que hoje trabalha numa empresa de mídia. Não basta ter uma tecnologia fantástica e competente. Só seremos uma media tech quando todo o grupo começar a dominar os conceitos tecnológicos que permitem a construção dessa nova experiência de consumo. A essência da transformação é que toda a empresa passa a dominar a tecnologia da mesma forma que domina o conteúdo. Se pudesse resumir numa frase, é uma tecnologia que busca inovação e performance from-glass-to-glass: do vidro da lente da câmera até o vidro da tela onde o consumo acontece.
P – Na prática, o que isso significa?
R – Temos cerca de 4.000 profissionais apoiando todas as etapas de produção, distribuição e monetização de conteúdo. Uma tecnologia ubíqua, que precisa refletir essa estratégia já mencionada pelo nosso presidente executivo, Jorge Nóbrega, de nos tornarmos uma organização direct-to-consumer. Nossos produtos digitais que são ofertados diretamente ao consumidor dependem de uma base tecnológica muito robusta.
P – Os produtos digitais passam a ser mais importantes que os tradicionais?
R – Partimos do pressuposto de que temos de ser capazes de produzir conteúdo em qualquer gênero e para qualquer plataforma: dramaturgia, variedades, jornalismo, esporte, todos os conteúdos infantis da Globosat. Tudo será apoiado por uma plataforma de tecnologia única. Na distribuição desses conteúdos, contamos com todo o suporte tecnológico na gestão da nossa rede de TV aberta, nosso relacionamento com as afiliadas. E, ao mesmo tempo, todo o grande negócio da TV paga, onde temos uma imensa capilaridade na distribuição digital.
P – Mas não há diferenças entre o público da TV aberta e o assinante da TV paga?
R – Sim, aí entra o que chamamos hub digital. A integração acontecerá de uma forma que você, consumidor, sequer perceberá qual é a tecnologia. É desenvolver softwares e produtos digitais com foco nas nossas grandes fontes de receita: publicidade e assinaturas. Aqui, claro, tem o Globoplay como é hoje, e tudo que ele será nessa transformação, que aliás nunca para. São milhares de lançamentos feitos mensalmente, para garantir um produto que estará sempre evoluindo.
R – A cadeia de valor de publicidade se sofisticou, entre anunciantes e veículos. O que a Globo está oferecendo é uma maneira de relacionamento mais moderna com o mercado publicitário, baseada em dados e performance, independente das plataformas tradicionais: TV aberta, TV paga e os vários produtos digitais que temos. A plataforma Globo Ads suporta todo o inventário do grupo num modelo de relacionamento mais rápido, intuitivo, moderno, com o ecossistema de publicidade.
P – A Globo tem cerca de 100 milhões de telespectadores. É possível gerenciar dados de todos eles para mostrar aos anunciantes?
R – Uma empresa media tech precisa ser baseada em dados. Investimos muito num centro de excelência em analytics. Sempre tivemos na Globo uma pegada de inovação muito forte. Nossa área de P&D se fortalece e passa a ser chamada media tech lab. Cada vez mais estaremos desenvolvendo soluções que não encontramos no mercado para atender demandas de negócio. Possuímos hoje a maior CDN privada do Brasil, que é a Globo.com.
P – O brasileiro sempre gostou muito de televisão. Isso tende a mudar com o crescimento das novas mídias?
R – De fato, a TV aberta tem no Brasil uma relevância que não encontramos em nenhum outro lugar do mundo. Nossa experiência mostrou que a tela grande continua sendo absolutamente relevante. E somando o tempo médio que as pessoas gastam fica claro que os brasileiros têm assistido mais TV. Nossos conteúdos digitais – Globoplay, Globosat Play, Premiere etc. – têm no TV a tela onde o consumo se dá por mais tempo. Nossa visão é que precisamos construir uma experiência na tela grande em que o consumidor tenha acesso aos conteúdos que lhe interessam sem perceber se vêm pela TV aberta, pelas operadoras ou pela internet.
P – No mundo inteiro, vemos as emissoras perderem audiência enquanto os serviços de streaming ganham mais assinantes. Essa tendência deve continuar?
R – Falando como engenheiro, na minha experiência e conversando com interlocutores do mundo inteiro, os fundamentos tecnológicos da internet não permitirão um consumo massivo e ao vivo simultâneo que chegue aos nossos 100 milhões de usuários. Os modelos de distribuição broadcast (TV aberta ou paga) continuarão mega relevantes para tudo que for massivo: esporte, Jornal Nacional, novelas. Para dar uma ideia, o recorde mundial de conteúdo live simultâneo pela internet é da Índia, uma partida de cricket assistida por apenas 14 milhões de pessoas! A internet tem ainda muitos gargalos. Os modelos broadcast continuarão relevantes durante muito tempo.
P – Outros países já estão prestes a introduzir a TV 3.0, enquanto o Brasil ainda tem regiões sem acesso à TV digital. Vamos continuar atrasados?
R – O que temos é uma evolução. O SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre) completou 10 anos em 2018. Concluímos o switch-off e ganhamos em audiência. A TV 3.0, já lançada na Coreia do Sul e no Japão, exige uma nova estrutura tecnológica. Não há espaço para isso no Brasil, dada a situação econômica. Mas não precisamos de um novo padrão, há um grande espaço para evoluir o SBTVD. Aprovamos este ano duas inovações muito importantes: DTV Play, que é uma ponte entre o mundo broadband e o broadcast, e a introdução do áudio imersivo nas transmissões, cujas normas já estão publicados na ABNT. A indústria já está colocando em seus TVs, soundbars etc.
P – Até agora, a TCL foi a única fabricante que adotou a plataforma Globoplay. O que falta para outras empresas adotarem?
R – Nossa proposta é de mudar a experiência do consumidor ao transitar do ambiente de TV para o ambiente de internet. Nos TVs da TCL, quando acaba o capítulo da novela, o telespectador que tem seu ID Globo recebe a mensagem “quer assistir agora o capítulo de amanhã”? É mais rápido do que trocar de canal. É uma experiência fluida, trafega da TV aberta para a internet e vice-versa de uma forma muito natural. Além disso, ele estando logado, podemos oferecer novos conteúdos de acordo com seu perfil. Você está assistindo a um jogo e aparece: “você que é assinante Premiere, o jogo do seu time vai começar agora”. É essa conversa broadcast x broadband que, para mim, será o futuro da televisão. Netflix, Amazon, YouTube… ninguém vai poder oferecer isso.
P – Mas, para que isso dê certo, é necessária uma grande base instalada de TVs de várias marcas…
R – Nada acontece rápido, porque há um ciclo de desenvolvimento. Algumas empresas dependem de soluções globais. É preciso lembrar que, hoje, 70% dos domicílios ainda não têm TV paga. Enquanto DTV Play é aberto a todas as emissoras, com acesso gratuito, Globoplay só será encontrado em algumas marcas. A performance depende de nossa relação com o fabricante. Não posso colocar Globoplay num TV da marca X se não houver um acordo; quanto mais você entender o sistema, melhor será a performance.
P – Podemos afirmar que a solução Globoplay é aquilo que os americanos chamam “TV 2.5” e os europeus chamam HBB (Hybrid Broadcast Broadband)?
R – Sim, só que Globoplay traz também a experiência do áudio imersivo e a possibilidade de ofertar conteúdos em espaço de cor rec.2020 e HDR dentro do padrão atual, sem deixar de ser compatível com os TVs antigos. A missão é definir um modelo em que todos os mais de 80 milhões de TVs digitais existentes nas casas possam receber o sinal quando começarmos os conteúdos HDR.
P – O investimento nos novos estúdios foi pensado para essa realidade futura que vocês imaginam?
R – Sim, é o que vai nos permitir inovação from-glass-to-glass, como comentei antes. Lá, podemos produzir em HD, 4K e até em 8K, embora não haja plano de produzir conteúdos em 8K (estamos apenas aprendendo). Hoje, todas as nossas séries já são em 4K. Muitas são originais para Globoplay. Mas o grande salto é que agora podemos fazer também novelas em 4K, e com uma agilidade que antes não era possível. Nossos diretores podem ter mais liberdade na edição das cenas sem prejudicar o fluxo de trabalho, que é fundamental numa novela.